quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

O Homem, o tempo, a graça

Extratos do Auto do Homem, do tempo e da graça. 

Começam a bater as pancadas da meia-noite.

O HOMEM, aflito, olha de um lado e de outro.

HOMEM - Eis que se vão encontrar o ancião e a criança, como pintam os almanaques e a primeira página dos jornais ilustrados. 
O velho deixará seu testamento ao novo. 
O novo entrará soberano e dominador. 
Tenho medo, tenho medo, do Ano Novo; é ele que possui agora as palavras da vida e da morte... Soa a última pancada do sino. 

Entra em cena o TEMPO.

HOMEM - Mas, que vejo? Onde está o outro? 

TEMPO - Que outro? 

HOMEM - Não és dois, o Ano Velho e o Ano Novo?

TEMPO - Não há velho nem novo; sou o Único. 

HOMEM - Na verdade és muitos, mas no último minuto de Dezembro és dois. Dar-se-á o caso de não haver eu visto passar o outro, no preciso minuto? 

TEMPO - Não existe outro. Só eu existo. 

HOMEM - Se tendes um número não és único. 

TEMPO - Que número? 

HOMEM - O do calendário. 

TEMPO - Numerosos são os calendários, as eras e as hégiras. Possuo muitos números, mas sou sempre o mesmo. 

HOMEM - Então não és o Ano Novo? 
Deixa-me ver o teu rosto! (Recuando com assombro) Horror dos horrores! 
Ele não tem olhos, nem boca, nem nariz, nem face . .. 
É mais terrível do que o Ano Velho, porque ao menos conhecíamos daquele a execrável fisionomia de matador e incendiário.
Mas este não tem olhos por onde se veja a alma, nem boca por onde se lhe possa medir a sensualidade ou o timbre do seu misterioso querer. 
Ai! Bem o temia eu! 
E agora, estou diante dele! 
Ó pavoroso personagem sem rosto: que me trazes nos próximos meses?

TEMPO - É a ti que te faço tal pergunta, imprecando-te, Homem, para que me digas: que pretendes de mim? 

HOMEM - Tua atitude é desconcertante como teu rosto sem rosto, tua voz sem boca, tua visão sem olhos. 
Pois então sou eu, mísero e medroso, que, vindo interrogar o Oráculo que és, hei de, ao contrário, prognosticar-te o destino? 
Estarão os tempos tão mudados que a mim, Homem, desamparado de todo o conforto e esperança, já não me é lícito recorrer, como outrora em Roma, em Atenas, em Babilônia, à sabedoria dos Oráculos, para erguer - ainda que por símbolos ou fórmulas augurais - uma ponta do véu que encobre aos olhos humanos a página do Livro do Destino, onde escreveram seus decretos as mãos do Bem e do Mal? 
Sou eu que te hei de consolar com os "porquês", os "comos", os "quandos" e os "ondes", que vim buscar, sedento de esperança, aqui, a meia-noite? 
Serás mais embusteiro do que o teu predecessor? 

TEMPO - Não tenho predecessor nem sucessor. 
Eu sou o Único, aquele que foi posto para ser trabalhado pelo Verbo, na criação dos Espaços e das Formas constantemente arrancadas de mim. 
A misteriosa geometria não procede da minha essência, mas, derivando da ação criadora, opera em mim como o escultor que liberta, pela sua vontade, as linhas adormecidas no recesso da pedra. 
E tu, Homem, criatura entre todas eleita, és superior a mim, porque participas da criação daquele que nos criou.
Portanto, em tudo o que te diga respeito, a ti e ao teu reino - o reino que te foi dado para que reinasses - tens o poder de fazer de mim o que te apraza ... 

HOMEM - Serei assim tão poderoso? 
Eu, joguete das paixões que soltei pelo mundo e agora me atormentam? 
Eu, que mil vezes caio, e torno a erguer-me, para de novo cair? 
Eu, que tremo pelo que virá e pelo que será, e que agarro com as mãos crispadas e levo ao peito egoistamente aquilo que julgo ser a minha felicidade e que, afinal, é uma nova forma de tormento, pelo constante receio de perdê-la? 
Sou eu, fraco e falível, que te hei de dizer, ó Ano Novo, o que te vai acontecer? 

TEMPO - E serás tu que me darás fisionomia, desde o primeiro minuto. 
Serei teu alter ego, o teu espelho; a tua própria personalidade na expressão dos acontecimentos, bons ou maus, que suscitares no mundo. 
Nada esperes de mim, porque sou eu que tudo espero de ti!

P. Salgado