quarta-feira, 22 de agosto de 2018

Derrotas ou obstáculos?

Não há derrotas, apenas obstáculos temporários.

Almirante Kolchak, Alexander Vasilyevich

Sobre a brevidade da vida - Seneca

I

1. A maior parte dos mortais, Paulino, lamenta a maldade da Natureza, porque já nascem com a perspectiva de uma curta existência e porque os anos que lhes são dados transcorrem rápida e velozmente. De modo que, com a exceção de uns poucos, para os demais, em pleno esplendor da vida é que justamente esta os abandona. No entanto, como se imagina, não apenas o comum dos mortais ou a massa ignorante sofre desse mal geral, pois, ao afetar também os homens cultos, seus efeitos geram muitos lamentos.

2. Por isso, aquela expressão do pai da medicina: "A vida é breve, a arte, longa". Por isso, o intento de Aristóteles (não próprio de um homem sábio) com a Natureza, exigindo um mínimo de equidade: "A Natureza concede aos animais um tempo de vida tal, que lhes permite ver passar cinco ou dez gerações; ao homem, nascido para realizar muitas e grandes coisas, fixa um limite mais breve".

3. Não temos exatamente uma vida curta, mas, desperdiçamos uma grande parte dela. A vida, se bem empregada, é suficientemente longa e nos foi dada com muita generosidade para a realização de importantes tarefas. Ao contrário, se desperdiçada no luxo e na indiferença, se nenhuma obra é concretizada, por fim, se não se respeita nenhum valor, não realizamos aquilo que deveríamos realizar, sentimos que ela realmente se esvai.

4. Desse modo, não temos uma vida breve, mas fazemos com que seja assim. Não somos privados, mas pródigos de vida. Como grandes riquezas, quando chegam às mãos de um mau administrador, em um curto espaço de tempo, se dissipam, mas, se modestas e confiadas a um bom guardião, aumentam com o tempo, assim a existência se prolonga por um largo período para o que sabe dela usufruir.

II

1. Por que reclamamos da Natureza? Ela se mostrou benevolente: a vida, se souberes viver, é longa. Mas a insaciável ganância domina um; outro, desperdiça sua energia em trabalhos supérfluos; um encharca-se de vinho, outro, por um irreprimido desejo de comerciar, é levado a explorar terras e mares na esperança de obter lucro. O desejo de guerrear tortura alguns, que não se mostram apreensivos em relação aos perigos alheios ou ansiosos aos seus próprios; há aqueles que, voluntariamente, se sujeitam à ingrata adulação dos superiores.

2. Também há os que se ocupam invejando o destino alheio e desprezando o seu próprio. A grande maioria, sem nenhum objetivo, lança-se a novos propósitos levianamente, encontrando apenas desgosto. Alguns, sem teram dado rumo a suas vidas, são flagrados pelo destino esgotados e sonolentos, de tal maneira que não duvido ser verdade o que disse, como se fosse um oráculo, o maior dos poetas: "Pequena é a parte da vida que vivemos". Pois todo o restante não é vida, mas somente tempo.

3. Os vícios sufocam os homens e andam a sua volta, não lhes permitindo levantar nem erguer os olhos para distinguir a verdade. Permanecem imersos, presos às paixões, não favorecendo um voltar-se para si próprio. Mesmo encontrando alguma paz, eles continuam sendo levados por suas ambições, não achando tranquilidade, tal como o fundo do mar que, depois da tempestade, ainda continua agitado.

4. Imaginas que falo daqueles cujos vícios estão explícitos? Observa os que a sorte abençoou: eles se sentem sufocados pelos seus bens. As riquezas são pesadas para muitos! A preocupação com a eloquência e a necessidade de mostrar talento tirou o sangue de muitos! Outros enfraqueceram devido a uma vida de libertinagens! Muitos possuem um grande número de clientes, mas nenhuma liberdade! Por fim, observa a todos, desde os mais simples aos mais poderosos. Este advoga, aquele assiste, um é acusado, outro defende, aquele outro julga; ninguém pede nada para si, uns nos outros se consomem. Indaga sobre aqueles cujos nomes são conhecidos de todos e verás por que o são: este cuida daquele, que cuida de outro: ninguém cuida de si mesmo. Além disso, é extremamente irracional a indignação de alguns, pois se queixam do desprezo de seus superiores, mas eles próprios não os procuram, embora desejassem. Quem ousará reclamar da soberba do outro, quando ele mesmo não dispõe de um momento para si? Aquele, apesar do aspecto insolente, te olhou com respeito, sem saber quem eras, ouviu tuas palavras e te recebeu junto a si. Tu não levastes em consideração nem a ti mesmo. Assim, não há motivo para que cobres teus favores a quem quer que seja, já que, quando os fizeste, foi por querer estar com o outro e não contigo mesmo.

III

1. Nenhum homem sábio deixará de se espantar com a cegueira do espírito humano. Ninguém permite que sua propriedade seja invadida, e, havendo discórdia quanto aos limites, por menor que seja, os homens pegam em pedas e armas. No entanto, permitem que outros invadam suas vidas de tal modo que eles próprios conduzem seus invasores a isso. Não se encontra ninguém que queira dividir sua riqueza, a a vida é distribuída entre muitos! São econômicos na preservação de seu patrimônio, mas desperdiçam o tempo, a única coisa que justificaria a avareza.

2. A gradar-me-ia questionar qualquer um dentre os mais velhos: "Vemos que já atingiste o fim da vida, tens cem ou mais anos. Vamos, faz o cálculo da tua existência. Conta quanto deste tempo foi tirado por um credor, uma amante, pelo poder, por um cliente. Quanto tempo foi tirado pelas brigas conjugais e por aquelas com escravos, pelo dever das idas e vindas pela cidade. Acrescenta, ainda, as doenças cusadas por nossas próprias mãos e também todo o tempo desperdiçado. Verá que tens menos anos do que contas.

3. Perscruta a tua memória: quando atingiste um objetivo? Quantas vezes o dia transcorreu como o planejado? Quando usaste teu tempo contigo mesmo? Quando mantiveste uma boa aparência, o espírito tranquilo? Quantas obras fizeste para ti com um tempo tão longo? Quantos não esbanjaram a tua vida sem que notasses o que estavas perdendo? O quanto de tua existência não foi retirado pelos sofrimentos sem necessidade, tolos contentamentos, paixões ávidas, conversas inúteis, e quão pouco te restou do que era teu? Compreenderás que morres cedo".

4. O O que está em causa então? Viveste como se fosses viver para sempre, nunca te ocorreu a tua fragilidade. Não te dás conta de quanto tempo já transvorreu. Como se fosse pleno e abundante, o desperdiças e, nesse ínterim, o tempo que dedicas a alguém ou a alguma coisa talvez seja o teu último dia. Temes todas as coisas como os mortais, desejas outras tantas tal qual os imortais.

5. Ouvirás a maioria dizendo: "Aos cinquenta anos me dedicarei ao ócio. Aos sessenta, ficarei livre de todos os meus encargos". Que certeza tens de que há uma vida tão longa? O que garante que as coisas se darão como dispões? Não te envergonhas de destinar para ti somente resquícios da vida e reservar para a meditação apenas a idade que não é produtiva? Não é tarde demais para começar a viver, quando já é tempo de desistir de fazê-lo? Que tolices dos mortais a de adiar para o quinquagésimo o sexagésimo anos as sábias decisões e, a partir daí, onde poucos chegaram, mostrar desejo de começar a viver?

IV

1. Poderás ver os homens mais poderosos, ocupando os mais altos cargos, demonstrarem que querem e louvam o ócio, preferindo-o a todos os seus bens. Desejam, por pouco que seja, abrir mão de sua posição, se possível com segurança, pois, embora nada que venha de fora a ameace ou abale, por si mesma a fortuna se desfaz.

2. O divino Augusto, a quem os deuses favoreceram mais do que a qualquer outro, não deixou de querer para si o descanso e o afastamento dos assuntos públicos. Toda a vez que se pronunciava, retomava o mesmo ponto: o desejo do ócio. Isso deixava seu trabalho mais leve com o consolo, falso, mas doce, de que, um dia, haveria de viver para si mesmo.

3. Em certa carta enviada ao Senado, como prometesse que seu repouso não seria desprovido de dignidade e seria condizente com a sua glória passada, encontrei essas palavras: "Estas coisas são mais fáceis falar que fazer. No entanto, o desejo daquele tempo, que tanto sonho, me anima de tal maneira que antecedo algo do desejado pela doçura das palavras pronunciadas".

4. O ócio era uma coisa tão desejada que, por não poder dele desfrutar, antegozava-o em pensamento. Aquele que via as coiss dependerem só de si, que decidia a sorte dos homens e das nações, com muito prazer sonhava com o dia em que se despojaria de sua magnitude.

5. Estava consciente de quanto suor exigiam aqueles bens que brilhavam por todas as terras, de quantas inquietações reprimidas eles ocultavam. Levado, primeiro, a combater os cidadãos, depois, os amigos e, por fim, os mais próximos, no mar e na terra, fez derramar sangue. Tendo levado a guerra pela Macedônia, Sicília, Egito, Ásia e a quase todos os litorais, dirigiu os exércitos já cansados de oprimir os romanos para as guerras externas. Enquanto pacificava os Alpes e subjuga inimigos infiltrados em meio à paz do Império e estende as fronteiras para além do Reno, do Eufrates e do Danúbio, na própria Roma, os punhais de Murena, Cepião, Lépido, Egnácio e de tantos outros se voltavam contra ele.

6. Não havia ainda se livrado das armadilhas destes, quando sua filha e muitos jovens nobres entregavam-se ao adultério como se fosse um sacramento, atormentando assim a sua velhice; sem falar, ainda, de uma união perigosa, a de uma determinada mulher a um Antonio. Arrancava esses males com as próprias mãos e outros já apareciam; tal como num corpo ferido e sangrando, uma outra parte sempre se rompia. Por essa razão, desejava ócio, e todo o seu empenho centrava-se nisso. Esse era o desejo daquele que podia satisfazer os desejos de todos os demais.

V

1. Marco Cícero, vivendo entre homens como Catilina, Clódio, Pompeu e Crasso, uns inimigos declarados, outros falsos amigos, estando a República ameaçada, procurava afastá-la de seu naufrágio. Ao fim, afundando com ela, não se mostrando sossegado nos períodos estáveis, nem paciente nos adversos, quantas vezes amaldiçoou o seu próprio consulado, o qual elogiara com motivo, mas exageradamente!

2. Com lamentáveis palavras se dirige numa carta a Ático, na época em que Pompeu, o pai, já havia sido vencido, e seu filho restabelecia, na Espanha, as armas despedaçadas! "O que faço aqui, perguntas? Permaneço, numa falsa liberdade, na minha casa de Túsculo". Acrescenta, ainda, outras palavras nas quais lamenta a vida passada, reclama do presente e se desespera com o futuro.

3. Cícero se diz semilivre, mas, francamente, nunca um sábio recorrerá a um nome tão humilhante, nunca terá meio liberdade, mas íntegra e sólida, desapegado, senhor de si e acima dos outros. Pois, quem pode ser superior ao que está acima do destino?

VI

1. Diz-se que Lívio Druso, homem violento e veemente, tendo implantado novas leis contra as más medidas dos Gracos, com o apoio de uma grande multidão de toda a Itália, não vendo êxito para a sua política, que já não podia levar adiante nem, uma vez lançada, abandonar, execrou sua vida agitada desde o princípio, declarando nunca ter tido férias, nem quando menino. Com razão, ainda adolescente, trajando a toga pretexta, ditava recomendações sobre os réus aos juízes e fazia prevalecer tão bem a sua opinião no fórum que ganhou, seguindo dizem, algumas causas.

2. A que não levaria uma ambição tão prematura? Portanto, era tarde para se quixar da falta de férias, ele que, desde criança, era um perturbador e um elemento nocivo ao fórum. Discute-se ter ele se suicidado, pois morreu de um ferimento na virilha; duvidam de ter sido sua morte voluntária, mas ninguém, de que tenha sido oportuna;

3. É inútil evocar os que, embora pareçam felizes aos outros, declaram eles mesmos que, na verdade, odeiam todas as ações de suas vidas. Entretanto, com essas declarações não mudaram nem a si próprios nem aos demais, pois mal falavam e as paixões faziam-nos recair em seus antigos costumes.

4. Certamente, uma vida como essa, mesmo que dure mais de mil anos, será determinada por limites estreitos. Estes vícios podem devorar não apenas um século. A razão pode estender o espaço de tempo de que dispomos, mas esse pode escapar. Não podes te apossar dele, nem retê-lo, ou fazer demorar a mais fugidia das coisas, apenas que se perca como se fosse uma coisa supérflua e substituível.

VII

1. Coloco em primeiro lugar aqueles que nunca estão disponíveis para nada, senão para o vinho e para os prazeres da carne. Outros, embora se prendam à imagem da glória, erram honradamente. Podes me enumerar os avarentos, os raivososo ou os que se entregam a ódios e injustas guerras. Eles, pelo menos, pecam de forma mais viril. Todavia, os que se abandonam à gula e aos prazeres carnais se degradam de forma desonrosa.

2. Examina todo o tempo deles, verifica quanto gastam em cálculos, em armadilhas, quanto temendo, quanto bajulando, quanto sendo bajulados e quanto ocupam com sua segurança e a dos outros, quanto gastam com banquets - que já se tornaram uma obrigação. Verá que nem os seus bens nem os seus males os deixam repirar.

3. Por fim, é consenso que um homem ocupado não pode fazer nada bem: não pode se dedicar à eloquência nem aos estudos liberais, já que o seu espírito, distraído com coisas diferentes, não se aprofunda em nada, ao contrário, tudo que lhe é imposto rejeita. Nada está mais longe do homem ocupado do que viver, nenhuma coisa é mais difícil de aprender. Para todas as outras artes, há muitos mestres em diferentes lugares, dentre os quais encontram-se até mesmo crianças com habilidade para ensiná-las. Deve-se aprender a viver por toda a vida e, por mais que te admires, durante toda a via se deve aprender a morrer.

4. Muitos dos maiores homens, afastados todos os obstáculos, renunciadas as riquezas, os negócios e os prazeres, usaram o seu tempo até o fim para aprender a viver; muitos, contudo, deixaram a vida confessando não ter aprendido, muito menos aprenderam aqueles dos quais já falei.

5. Acredita, é próprio dos grandes homens e de quem se eleva acima dos erros humanos não consentir que lhe tirem nada de seu tempo, e assim toda a sua vida é muito longa, porque se dedicou a si mesmo, não importando quanto tenha durado. Nem um instante dela se manteve descuidado, distraído, ou esteve subordinado a outro e, dessa maneira, ele, guardião cuidadoso, não encontrará ninguém que acredite ter vivido tão dignamente a ponto de querer trocar sua vida com a de alguém. Poranto, a este, o tempo foi suficiente, mas áqueles, aos quais o povo exauriu, ela necessariamente faltou.

6. Mas não há motivos para que penses que eles não percebem seus erros; certamente ouvirás muitos que são pressionados pela sua grande prosperidade, às vezes, a clamar, no meio da multidão de clientes, ou de suas causas jurídicas, ou de outras honrosas misérias: "Não me permitem viver!".

7. E por que permitiriam? Todos os que te reclamam para si te afastam de tuas ocupações. Quantos dias te levou aquele réu? E aquele candidato? E aquela velha, cansada de enterrar herdeiros? E aquele que finge ser doente para exercitar a cobiça dos caçadores de testamentos? E aquele amigo poderoso, que te quer não como amigo, mas como parte de seu cortejo? Faz a conta dos dias de tua vida, perceberás que poucos restaram para ti mesmo.

8. Tendo aquele conseguido os cargos com os quais sonhava, deseja largá-los e repete sem cansar: "Quando este ano passará?". Outro proporciona jogos públicos, os quais desejou que lhe coubessem por sorte e diz: "Quando ficarei livre deles?". Cada um se lança à vida, sofrendo da ânsia do futuro e do tédio do presente.

9. Mas aquele que utiliza todo o tempo apenas consigo mesmo, que organiza todos os dias como se fosse o último, não deseja, nem teme o amanhã. Que novo prazer existe que qualquer hora já não lhe possa trazer? Conhece todas as coisas, tudo foi desfrutado à saciedade. Do que falta, que o destino disponha como quiser: a vida já está assegurada. Nada lhe pode ser adicionado ou retirado e, mesmo que se acrescente alguma coisa, seria como alimentar o que já está farto de qualquer alimento, ou seja, receber o que não mais deseja.

10. Não julgues que alguém viveu muito por causa de suas rugas e cabelos brancos: ele não viveu muito, apenas existiu por muito tempo. Julgas que navegou muito aquele que, tendo se afastado do porto, foi pego por violenta tempestade e, errante, ficou à mercê dos ventos, ao capricho dos furações, sem, no entanto, sair do lugar? Ele não nevegou muito, apenas foi muito acossado.

VIII

1. Admiro-me quando vejo alguns pedindo tempo e aqueles a quem se pede serem complacentes; ambos consideram que o tempo pedido não é tempo mesmo: parece que nada é pedido e nada é dado. Joga-se com a coisa mais preciosa de todas, porém ela lhes escapa sem que percebam, já que é incorporal e algo que não está sob os olhos, por isso é considerada desprezível e nenhum valor lhe é dado.

2. Os homens recebem pensões e aluguéis com prazer e concentram nessas coisas suas preocupações, esforços e cuidados. Ninguém valoriza o tempo, faz uso dele muito largamente como se fosse gratuito. Porém, quando doentes, se estão próximos da morte, jogam-se aos pés dos médicos. Ou, se temem a pena capital, estão preparados para gastar todos os seus bens para viver, tamanha é a confusão de seus sentimentos!

3. Se pudéssemos apresentar a cada um a conta dos anos futuros, da mesma forma que se faz com os que já passaram, como tremeriam aqueles que vissem restar-lhes poucos anos e como os economizariam! Pois, se é fácil administrar o que, embora pouco, é certo, deve-se conservar com muito cuidado o que não se pode saber quando acabará.

4. No entanto, não há como dizer que eles ignoram quão precioso seja o tempo. Costumam falar aos que admiram muito que estão dispostos a lhes dar parte de sua vida. E, realmente, dão, não percebendo que subtraem vários anos de si próprios sem, entretanto, aumentar os daqueles. Ignoram, porém, o fato de estarem perdendo seus anos, já que lhes é tolerável a perda de um bem que não se percebe.

5. Ninguém te devolverá aquele tempo, ninguém te fará voltar a ti próprio. Uma vez lançada, a vida segue o seu curso e não o reverterá nem o interromperá, não o elevará, não te avisará de sua velocidade, transcorrerá silenciosamente. Ela não se prolongará por ordem de um poderoso, nem pelo desejo do povo. Correrá tal como foi impulsionada no primeiro dia, nunca sairá de seu curso, nem o retardará. O que acontecerá? Tu estás ocupado, e a vida se apressa. Por seu turno, a morte virá e a ela deverás te entregar, querendo ou não.

IX

1. Pode haver alguma coisa mais tola, me diga, que a maneira de viver desses homens que deixam a prudência de lado? Vivem ocupados para poder viver melhor: acumulam a vida, dissipando-a. Fazem seus projetos para longo tempo, porém esse adiamento é prejudicial para a vida, já que nos tira o dia-a-dia, rouba o presente comprometendo o futuro. A expectativa é o maior impedimento para viver: leva-nos para o amanhã e faz com que se perca o presente. Daquilo que depende do destino, abres mão; do que depende de ti, deixas fugir. Para onde te voltas, para o que te dedicas? Todas as coisas que virão jazem na incerteza: vivi daqui para diante.

2. Eis que o maior profeta, como que instigado por uma boca divina, para saudar-te canta os versos: "O melhor dia da vida é o que foge primeiros aos miseráveis mortais". "Por que te demoras", ele pergunta, "por que tardas?" Se não tomas a iniciativa, o dia foge e, mesmo que o tenhas ocupado, ele fugirá. Assim, é preciso combater a celeridade do tempo usando a velocidade, tal como de uma rápida corrente, que não fluirá para sempre, se deve beber depressa.

3. O poeta, que esplendidamente censura tua cogitação infinita, não fala de melhor idade, mas melhor dia. Entendes, com a tua avidez, aquelo que parece lento e seguro do tempo, mas que te foge de tal maneira em uma longa série de anos e meses? Ele te fala de um dia, deste próprio dia que foge.

4. Portanto, não há dúvida que o melhor dia é o primeiro que foge aos miseráveis mortais, isto é, aos ocupados. A velhice aflige tanto os seus espíritos infantis, que chegam a elas despreparados e dasarmados. Na verdade, nada foi previsto: subitamente e sem estarem prontos chega a ela, não percebendo que ficava mais próxima todos os dias.

5. Do mesmo modo que uma conversa, uma leitura ou qualquer reflexão maior desvia a atenção do viajante, que, de repente, se vê chegando ao seu destino sem perceber que dele se aproximava, assim é o caminho da vida, incessante e muito rápido, que, dormindo ou acordado, fazemos com um mesmo passo e que, aos ocupados, não é evidente, exceto quando chegam ao fim.

X

1. Se quisesse dividir minha proposição em partes e argumentos, muitos deles me ocorreriam para provar que é brevíssima a vida dos homens ocupados. Fabiano costumava dizer, não como um catedrático, mas como um verdadeiro e antigo filósofo: "Não é com sutileza, nem com pequenos golpes, que se deve combater as paixões, mas sacando a espada no momento do choque", não aprovava sofismas: "pois se deve vencer as paixões, não espicaçá-las". Contudo, para mostrar aos insensatos o seu erro, deve-se ensiná-los, não somente deplorá-los.

2. A vida se divide em três períodos: aquilo que foi, o que é e o que será. O que fazemos é breve, o que faremos, dúbio, o que fizemos, certo. Na verdade, o destino perdeu o controle sobre o passado, ninguém pode querer recuperá-lo.

3. Os homens ocupados admitem isso. Na verdade, eles não têm tempo para olhar para o passado e, se tivessem, lhes seria desagradável a recordação de algo penoso. O fato é que, somente forçados, eles revivem os maus tempos, não desejam retê-los, pois os vícios, embora escondidos sob alguma sedução do prazer transitório, se revelam com a recordação.

4. Ninguém retoma de bom grado o que passou, exceto aquele cujas ações estão submetidas à sua própria consciência. O que cobiçou ambiciosamente, desprezou arrogantemente, venceu violentamente, enganou perfidamente, furtou desonestamente e prodigamente gastou deve temer a sua própria recordação. Esta é a parte sagrada de nossa vida, que ultrapassa todos os reveses humanos, que não pertence ao destino e que não pode ser atingida pela miséria, pelo medo, nem pelo ataque das doenças. Não se pode incomodá-la, nem tirá-la de quem a possui: a sua posse é perpétua e intrépida. Cada dia só está presente por alguns momentos, mas todos os dias do passado a ti se apresentam quando assim ordenas; consentem que sejam detidos e inspecionados pelo teu juízo, algo que que aos homens ocupados falta tempo para fazer.

5. Uma alma segura e tranquila pode correr por todos os momentos da vida; todavia, os espíritos dos homens ocupados estão sob um jugo, não podem se dobrar sobre si próprios, não podem se contemplar. Por conseguinte, a sua vida se precipita nas profundezas e, assim como de nada serve encher com líquido uma vasilha sem fundo, nada pode trazer de volta o tempo, não importa quanto ele te foi dado, se não há onde retê-lo. Ele atravessará os espíritos abalados e que nada apreendem.

6. O tempo presente é brevíssimo, ao ponto de, na verdade, não ser percebido por alguns. De fato, ele está sempre em curso, flui e se precipita; deixa de existir antes de chegar; não pode ser detido do mesmo modo que o mundo ou as estrelas, cujo incansável movimento não permite que se mantenham no mesmo lugar. Assim, somente o tempo presente pertence aos homens ocupados, tempo este tão breve que não pode ser alcançado e que é retirado deles já que estão distraídos com muitas coisas.

XI

1. Enfim, queres saber o pouco que vivem os ocupados? Vê o quanto eles desejam longamente viver. Velhos decrépitos mendigam com súplicas um prolongamento de poucos anos. Eles fingem ser mais novos do que realmente são, lisonjeiam a si próprios com mentiras e se enganam com prazer, como se pudessem iludir o destino. Mas, quando alguma doença lhes mostra a sua fragilidade, morrem amedrontados, como se não estivessem deixando a vida, mas ela estivesse sendo arrancada deles. Eles gritam que foram tolos por não terem vivido e que, se conseguirem escapar daquela doença, viverão no ócio. Então, pensam o quanto inultilmente se esforçaram para coisas que não aproveitaram, quão vãos foram todos os seus trabalhos.

2. Porém, por que não seria longa a vida para aqueles que a conduziram à distância de qualquer ocupação? Nada dela foi delegado a outrem, nada foi dispersado, nada foi deixado à sorte, nada desperdiçado com negligência, nada esbanjado pela liberalidade, nada foi supérfluo: a vida toda foi, pode-se dizer, proveitosa. Por mais curta que seja, é mais que suficiente, de maneira que, ao chegar o último dia, o homem sábio não hesitará em ir para a morte com tranquilidade.

XII

1. Perguntas, talvez, a quem chamo de "ocupados"? Não há razão para pensares que se trate somente daqueles que só saem do tribunal quando lhes são enviados os cães, nem daqueles que vês ou serem esmagados orgulhosamente por seu séquito ou, desdenhosamente, em meio ao de outros; nem daqueles cujos ofícios tiram de casa para bater à porta de outro; nem mesmo daqueles a quem a lança do pretor mantém ocupados devido a uma causa em julgamento.

2. Há aqueles cujo ócio mesmo é ocupado; seja na casa de campo, em sua cama, na solidão, por mais longe que estejam de todos, eles são prejudiciais a si próprios. Deles não se pode dizer que a vida seja ociosa, mas apenas que possuem uma ocupação indolente. Tu chamas ocioso àquele que coleciona os tesouros de Coríntio com ansiosa delicadeza e consome a maior parte dos dias a polir lâminas enferrujadas? Àquele que se senta no lugar onde os meninos se untam com óleo (de fato, que crime, nem sequer com vícios romanos trabalhamos!), para vê-los lutar? Que classifica seu rebanho de jumentos pela cor e pela idade? Que patrocina os atletas mais reconhecidos?

3. Chamas de ociosos os que passam muitas horas no barbeiro, enquanto é arrancado qualquer pêlo que nasceu na noite anterior, falando sobre cada fio de cabelo enquanto a cabelereira é arrumada ou os cabelos deficientes são reunidos de um lado e de outro na testa? Como se irritam, se o barbeiro foi um pouco negligente, acreditando que estava aparando os cabelos de um homem de verdade! Como se inflamam, se parte de sua cabeleira foi cortada, se algo está fora da ordem, se tudo não cai em cachos idênticos! Quantos prefeririam ver em desordem a república e não a sua cabelereira? Quantos se atormentam mais com a elegância de sua cabeça do que com o seu estado de saúde? Quantos preferem ter o cabelo mais bem penteado a ser mais honesto? Estes que estão sempre ocupados entre o pente e o espelho são os que tu chamas de ociosos?

4. O que são, então, aqueles que trabalham compondo, escutando e recitando canções, enquanto torcem suas vozes, que a Natureza fez ótimas e simples, em inflexões de modulações insípidas? Estão sempre estalando os dedos para marcar alguma canção que têm na cabeça. Eles que, mesmo em assuntos sérios e, frequentemente, tristes, continuam cantarolando?

5. Estes não têm repouso, mas ocupações inertes. Certamente, eu não classificaria suas festas como tempo livre, uma vez que vejo o quão cuidadosamente organizam a baixela, quão diligentemente amarram as túnicas de seus jovens favoritos, quão inquietos ficam com o modo pelo qual o javali será preparado pelo cozinheiro; quão velozmente os jovens escravos, quando o sinal é dado, correm às suas tarefas; com quanta arte as aves são cortadas em pedaços pequenos; com quanto cuidado os rapazinhos limpam o vômito dos bêbados. É através desses artifícios que adquirem a fama de elegantes e luxuosos, e os seus males os seguem por todos os momentos de sua vida, eles não bebem nem comem sem alguma ambição.

6. Não contarás, de fato, entre os ociosos, aqueles que vão para lá e para cá sobre carruagens ou em liteiras e que, para seus passeios, jamais perdem a hora. Nem os que um outro avisa quando devem se lavar, nadar e jantar. É tamanha a debilidade e enfraquecimento de seus espíritos, que eles não conseguem saber por si próprios quando sentem fome!

7. Ouvi de um desses homens (se é que se pode chamar de humano quem desaprendeu os hábitos mais simples), quando era tirado do banho por várias mãos e colocado sobre um assento, interrogar: "Já estou sentado?". Tu crês que este que ignora se está sentado, consegue saber se vive, se enxerga, se é ocioso? Não saberei dizer, facilmente, de qual dos dois tenho mais pena, se daquele que ignora ou daquele que finge ignorar.

8. Muitos, deveras, se esquecem de várias coisas, outros fingem. Alguns vícios os seduzem como se fossem provas de felicidade, pois lhes parece ser mais do ser inferior e desprezível saber o que faz. Não creia, pois, que os mimos exageram quando ridicularizam a luxúria. Francamente, esses homens excedem em muito aquilo que os mimos apresentam. E é tamanha a abundância de vícios inacreditáveis, neste século, criativo somente para tais coisas, que já podemos acusar os mimos de negligência. É inacreditável que um homem, de tão dissoluto, precise saber por outro se está sentado!

9. Portanto, não é este o ocioso, nomeia-o de outra forma: este, a quem é necessário que se informe onde está o seu corpo, é um mortiço e, assim, de que modo pode ser senhor de qualquer parte do seu tempo?

XIII

1. Seria exaustivo demais examinar cada um daqueles que desperdiçaram a vida em jogos de xadrez, de bola, ou bronzeando-se ao sol. Não desfrutam do ócio aqueles cujos prazeres proporcionam muitas atividades. Ninguém duvida serem muitos os que se cansam sem nada fazer, como os que se dedicam a inúteis estudos de literatura, por exemplo, e eles já são em grande número entre os romanos.

2. Este foi um legado dos gregos, procurar saber quantos remadores tinha Ulisses, se foi a Ilíada ou a Odisséia que foi escrita primeiro e, ainda, se eram do mesmo autor, além de outros saberes dessa natureza que, se os tens para ti, em nada te gratificam e, se os tornas público, não serás considerado mais sábio, senão mais enfadonho.

3. Eis que essa paixão de aprender coisas inúteis tomou conta dos romanos. Há alguns dias, ouvi alguém contando qual foi o primeiro dos comandantes a realizar algumas ações, tais como: Duílio foi o primeiro a vencer uma batalha naval, Cúrio Dentato foi o primeiro a levar elefantes em seu cortejo triunfal. Esses assuntos, emboroa não levem à glória verdadeira, mostram exemplos de feitos cívicos. Tal ciência não traz nenhum benefício, apesar de chamar a atenção pela frivolidade da façanha.

4. Devemos perdoar também aos que investigam matérias como esta: quem foi o primeiro a convencer os romanos a embarcar em um navio? Foi Cláudio, por este motivo chamado Caudex, porque, entre os antigos, a reunião de várias tábuas era chamada de caudex; de onde o nome de códices para as tábuas da lei. Ainda hoje, os navios que carregam provisões pelo Tibre são chamados, à maneira antiga, de codicareiae.

5. Não se duvida que isto possa ter alguma valor, ou seja, que Valério Corvino foi o primeiro a subjugar Messina e, tomando para si o nome da cidade consquistada, foi o primeiro da família dos Valérios a chamar-se Messana, o qual, o vulgo, trocando as letras, passou a chamar de Messala.

6. Acaso vais permitir a alguém se ocupar disto também, ou seja, que Lúcio Sula foi o primeiro a mostrar os leões soltos no circo, enquanto que antes eram vistos acorrentados, e que foram enviados arqueiros pelo rei Boco para exterminá-los? Façamos, porém, essa concessão. Mas, acaso há algum valor em saber que Pompeu foi o primeiro a mostrar um combate, no circo, com dezoito elefantes, tendo sido enviados criminosos para enfrentá-los como se fosse uma batalha? O primeiro dos cidadãos e, como conta a tradição, entre os antigos líderes, considerado o que se destacou pela sua bondade, pensou ser um novo tipo de espetáculo digno de ser relembrado matar homens de uma nova maneira? Combatem? É pouco! Despedaçam-se? É pouco! Que sejam esmagados por uma enorme quantidade de animais!

7. Seria bom que isso fosse esquecido para que, mais tarde, alguém não aprendesse e invejasse uma ação, no mínimo, desumana. Quantas trevas uma grande felicidade causa às nossas mentes? Acreditou estar acima das leis da natureza quando atirou o bando de miseráveis a feras nascidas sobre outros céus, quando proporcionou uma batalha entre animais tão díspares, quando fez correr muito sangue diante do povo romano - aquele que, em breve, seria obrigado a verter muito mais. Mas, logo após, o mesmo, enganado pela deslealdade alexandrina, entregou-se a um simples escravo para ser morto, só então compreendendo a inútil ostentação de seu cognome.

8. Mas, para voltar ao ponto de onde me desviei e para mostrar a inútil atenção de alguns nessa matéria, aquele mesmo estudioso narrava que Metelo, tendo vencido os cartagineses na Sicília, foi o único dentre os romanos a levar em sua marcha triunfal, diante de seu carro, cento e vinte elefantes; e que Sula foi o último dos romanos a aumentar o pomerium, coisa que era feita, segundo os costumes antigos, após a conquista de territórios italianos e não provinciais. Tem utilidade maior saber que o monte Aventino estava situado fora do pomerium, como afirmava aquele, por causa de dois motivos, a saber, ou porque a plebe tinha se afastado desse local, ou porque Remo, procurando os auspícios, o vôo das aves não foi, neste lugar, favorável - e ainda tantos outros saberes, que, ou estão cheios de mentiras, ou são dessa natureza?

9. Mesmo que admitas que eles contam tudo isso de boa-fé e que são responsáveis pelo que escrevem, contudo, isso ajudará a diminuir os enganos de quem? Irá refrear as paixões de alguém? A quem tornará mais generoso, mais corajoso ou mais justo? Por vezes, Fabiano dizia duvidar se era melhor não levar adiante estudo algum do que se envolver com os de tal natureza.

XIV

1. Dentre todos, somente são ociosos os que estão livres para a sabedoria, apenas estes vivem, pois não só controlam bem sua vida, como também lhe acrescentam a eternidade. Todos os anos que se passaram antes deles são somados aos seus. A não ser que sejamos muito ingratos, aqueles sábios fundadores das ideias sagradas nasceram para nós e nos prepararam a vida. Pelos seus esforços, somos conduzidos das trevas para a luz, para as coisas mais belas. Não nos é proibido o acesso a nenhum século, somos recebidos em todos; e se desejarmos, pela grandeza da alma, ultrapassar os pequenos limites da fraqueza humana, há um enorme espaço de tempo a ser percorrido.

2. Poderemos disputar com Sócrates, duvidar com Carnéades, encontrar a tranquilidade com Epicuro, vencer a natureza do homem com os estóicos, ultrapassá-la com os cínicos. Uma vez que a natureza nos permite comungar com toda a eternidade, por que não nos afastarmos da estreita e pequena passagem do tempo e nos entregarmos com todo o nosso espírito ao que é ilimitado, eterno e dividido com os melhores?

3. Os que se envolvem com muitos compromissos, os que inquietam a si e aos outros, conscientes de suas insânias, após terem percorrido, todos os dias, as portas de todos e não ter deixado de entrar em nenhuma que estivesse aberta, após terem levado sua saudação interesseira às mais longínquas casas, muito pouco terão visto numa cidade tão grande e dilacerada por inúmeros desejos.

4. Quantos serão aqueles cujo sono, luxúria e grosseria os afastarão! Quantos, após os terem sacrificado com longa espera, não passarão fingindo pressa? Quantos não vão evitar passar pelo átrio repleto de clientes, fugindo por portas escondidas, como se fosse menos descortês enganar do que despedir? Quantos, ainda, sonolentos e pesados pela bebedeira da véspera, responderão, aos pobres miseráveis que interromperam seu sono, bocejando arrogantemente, mal abrindo os lábios que fiquem esperando, pois voltarão a dormir?

5. É lícito afirmar que se dedicam aos verdadeiros ofícios os que querem desfrutar, todos os dias, da intimidade de Zenão, Pitágoras, Demócrito, Aristóteles, Teofrasto e de outros mestres das boas artes. Nenhum deles faltará, nenhum mandará embora aquele que o procurar sem deixá-lo mais feliz e mais dedicado a ele; nenhum permitirá, a quem quer que seja, sair de mãos vazias; eles podem ser encontrados por qualquer mortal, seja durante o dia, seja à noite.

XV

1. Nenhum deles vai te levar para a morte, todos te ensinarão a morrer; nenhum deles desperdiçará teus anos, te oferecerá os seus; nunca a conversa com eles será perigosa, nunca a amizade será fatal, ou o respeito dispendioso. Conseguirás deles tudo que desejas; eles não serão culpados, se não conseguires exaurir aquilo o que querias.

2. Que felicidade, que bela velhice terá aquele que se propuser a ser cliente deles! Este terá com quem dialogar sobre as menores e maiores questões, a quem escutar a verdade sem ser ofendido, e será louvado sem adulação para que se possa moldar à sua semelhança.

3. Costumamos dizer que não está em nosso poder escolher os pais que o destino nos deu; porém, podemos ter um nascimento de acordo com nossa escolha. Há famílias dos mais nobres espíritos, basta escolher a qual delas desejas pertencer e receberás não apenas o nome, mas também os bens, os quais não precisarás vigiar de forma miserável e mesquinha, pois quanto mais forem compartilhados, maiores se tornarão.

4. Estes te levarão ao caminho da eternidade, te elevarão ao ponto mais alto de onde ninguém corre o risco de cair. Esta é a maneira de prolongar a vida, ou mesmo de transformá-la em imortalidade. As honras, os monumentos, tudo aquilo que a ambição decretou ou construiu com trabalhos logo há de ruir, uma vez que não existe nada que a passagem do tempo não arruíne ou ponha em desordem. Porém, não pode atingir os conhecimentos que a sabedoria construiu, pois nenhuma idade pode destruí-los ou diminuí-los. A próxima e as seguintes sempre vão aumentá-los mais um pouco, já que a inveja avista apenas o que está próximo de si, e admiramos com menos astúcia o que está distante.

5. Assim, a vida do sábio se estende por muito tempo, ele não tem os mesmos limites que os outros, é o único que não depende das leis do gênero humano, todos os séculos o servem como a um deus. Algo se perde no passado? Ele recupera com a memória. Está no agora? Ele desfruta. Há de vir com o futuro? Ele antecede. A união de todos os tempos em um só momento faz com que sua vida seja longa.

XVI

1. Muito breve e agitada é a vida daqueles que esquecem o passado, negligenciam o presente e temem o futuro. Quando chegam ao fim, os coitados entendem, muito tarde, que estiveram ocupados fazendo nada.

2. E por que invocam a morte, não se pode provar que tenham vivido uma longa existência. Sua imprudência atormenta-os com sentimentos incertos, os quais direcionam para as próprias coisas que temem: desejam a morte porque ela os amedronta.

3. Não é argumento para nos levar a pensar que desfrutam de uma longa vida o fato de, muitas vezes, acharem que os dias são longos, ou reclamarem de que as horas custam a passar até o jantar, pois, se estão sem ocupação, sentem-se abandonados e inquietam-se com o ócio sem saber como dispor do mesmo ou acabar com ele. Assim, desejam uma ocupação qualquer, e o período de tempo entre dois afazeres é cansativo. E , certamente, é isso que acontece quando o dia do combate dos gladiadores é marcado, ou quando se aguarda qualquer outro evento ou espetáculo: desejam pular os dias que ficam no meio.

4. Toda a espera por alguma coisa lhes é penosa, mas aquele momento que aspiram é breve e passa rápido, tornando-se muito mais breve por sua própria culpa, pois transitam de um prazer a outro sem permanecer em apenas um desejo. Seus dias não são longos, mas insuportáveis. Ao contrário, muitas curtas lhes parecem as noites que passam nos braços das prostitutas, ou entregues a bebedeiras!

5. Talvez daí resulte o delírio dos poetas que alimentam os erros dos homens com histórias nas quais se mostra Júpiter, embevecido pelo desejo do coito, duplicando a duração da noite. De que se trata, senão de exaltar os nossos vícios, já que os encontramos nos deuses e vemos na divindade um exemplo de fraqueza? Podem estes não achar muito curtas as noites pelas quais pagam tão caro? Perdem o dia esperando a noite: a noite, com medo da aurora.

XVII

1. Os seus prazeres são inquietos e abalados por aflitos terrores, e, mesmo nos momentos de maior alegria, este pensamento inoportuno aparece no seu íntimo: "Até quando isso durará?" Nesse estado de ânimo, os reis lastimaram o seu poderio, não os consolou a grandeza da sua sorte, mas os aterrorizou o fim da sua ventura.

2. O mais insolente rei dos persas, quando, por grande espaço de campos, estendia o seu exército, o qual não podia medir pelo número, mas sim pela extensão, verteu lágrimas, porque, em cem anos, ninguém desta multidão de jovens haveria de estar vivo. Mas a esses, pelos quais chorava, ele próprio faria perecer uns na terra, outros no mar, uns em combate, outros na fuga, e, dentro de pouco tempo, exterminaria aqueles pelos quais temia o centésimo ano.

3. E então, as alegrias deles são ansiosas? É que não se apóiam sobre fundamentos sólidos, mas são perturbadas pela mesma inutilidade que as origina. Quais, então, acreditas serem os momentos tristes da vida deles, por eles próprios confessos, quando esses períodos de tempo dos quais se orgulham e parecem elevá-los acima da humanidade estão longe de lhes oferecer uma felicidade pura?

4. Os maiores bens demonstram inquietude, e as maiores fortunas são as menos confiáveis. Outra felicidade é necessária para conservar a felicidade, e, para os mesmos votos realizados, devem ser feitos novos votos. De fato, tudo aquilo que vem por acaso é instável, e o que mais alto se eleva, mais facilmente cai. Ora, a ninguém as coisas decaídas causam deleite. É, portanto, evidente que seja não apenas muito curta, mas também muito infeliz a vida daqueles que a preparam com grande trabalho e que só a podem conservar com esforços maiores ainda.

5. Adquirem penosamente aquilo que desejam, possuem com apreensão o que adquiriram. Enquanto isso, não se dão conta do tempo que não voltará, novas preocupações substituem as antigas, uma esperança realizada faz nascer outra esperança, a ambição provoca a ambição. Nossos cargos nos atormentam? Mais tempo lhe dedicamos que a outras coisas. Desejamos trabalhar como candidatos? Começamos como eleitores. Renunciamos à penosa função de acusar? Aspiramos à de julgar. Deixou de ser juiz? É feito pretor. Envelheceu na adminstração de bens alheios? Mantém-se ocupado com suas próprias riquezas.

6. Mário largou o serviço militar? Torna-se cônsul. Quíntio apressa-se a deixar a ditadura? Será mais uma vez arrancado do arado. Ainda não amadurecido por tantas empresas, o rei Cipião, vencedor de Aníbal e de Antíoco, marchará contra os cartagineses, ornamento do seu próprio consulado, garantia do seu irmão e, se ele próprio não tivesse impedido, teria sido colocado ao lado de Júpiter. Os cidadãos sediciosos perseguirão o salvador dos cidadãos e, tendo recusado na juventude honras que o tinham igualdado ao deus Júpiter, já velho, o deleitaria apenas a ambição de um tranquilo exílio. Nunca faltarão motivos, felizes ou infelizes, para a preocupação. A vida ocorrerá através das ocupações; nunca o ócio será obtido, sempre desejado.

XVIII

1. Afasta-te, então, do vulgo, caríssimo Paulino, mas, embora já bastante sofrido pela duração de tua vida, não deixa de procurar um porto mais tranquilo. Pensa quantas agitações subjugastes, quantas tempestades, privadas, suportaste, outras, públicas, se atiraram sobre ti. Por trabalhosos e inquietos exemplos, já demonstraste suficientemente ser virtuoso. Agora, experimenta o que farias no ócio. A maior parte da tua vida, certamente a melhor, foi dedicada à República, assim, toma um pouco do teu tempo para ti.

2. E não te convido à preguiça nem à inércia, pois nem no sono, nem em qualquer dos prazeres caros ao vulgo submergirias a vigorosa índole que há em ti. Isso não é repousar. Encontrarás atividades mais importantes que todas as que realizaste com devoção até aqui, as quais executarás no retiro e sem preocupações.

3. Tu, certamente, administras os afazeres do mundo tão desinteressadamente quanto os de outros, tão zelosamente quanto os teus, tão religiosamente quanto os do Estado. Obténs a afeição num ofício em que é difícil evitar o ódio, mas, contudo, acredita, vale mais se ocupar da tua própria vida do que dos suprimentos públicos.

4. Afasta esta força de espírito, capaz das maiores coisas, para um ministério honroso, sem dúvida, mas pouco preparado para uma vida feliz, e pensa que não foste instruído, desde a tenra idade, nas artes liberais, para que te ocupasses com milhares de grãos de trigo. Esperastes coisas maiores e mais elevadas. Não faltarão homens de perfeita sobriedade e de laboriosa atividade bem mais aptos a carregar pesos. Lentos jumentos são mais capazes para o trabalho que nobres cavalos, e quem já oprimiu a generosa agilidade deles com uma pesada bagagem? Pensa, além disso, quanto cuidado provoca uma carga tão penosa. Vais te ocupar com o ventre humano. Um povo com fome não é racional; portanto, nem a equidade saberia acalmá-lo, nem as orações dobrá-lo.

5. Há pouco, logo após a morte de Caio César, diz-se que este sofreu muito (se é que existe ainda algum sentido no além) porque o povo sobreviveu a ele e porque certamente teria subsistência para mais sete ou oito dias! Enquanto construía pontes com navios e brincava com as forças do império, aproximava-se o último dos males também para os habitantes: a escassez de alimentos. Constituiu-se quase na morte e na fome e, consequência da fome, a ruína de todas as coisas o seu infeliz desejo de imitar um rei insensato e estrangeiro.

6. Que estado de ânimo tinham aqueles aos quais eram confiados os abastecimentos públicos, ameaçados com ferro, pedras, fogo, e pela fúria de Calígula? Com enorme dissimulação, escondiam um mal latente embutido entre as vísceras do Estado e, digo, agiam assim com razão. De fato, algumas doenças devem ser curadas com a ignorância dos pacientes; muitos morreram por conhecer a causa do seu mal.

XIX

1. Refugia-te nestas coisas mais tranquilas, mais seguras, mais elevadas! Pensas que é a mesma coisa cuidar para que o transporte do trigo chegue livre da fraude e da negligência dos transportadores, que seja armazenado com cuidado nos armazéns, de modo que não se aqueça ou que não se estrague pela umidade e não fermente, e, por último, que a medida e o peso se encontrem de acordo com o combinado; pensas que tais cuidados possam ser comparados com estes santos e sublimes estudos que te revelarão a natureza de Deus, seu prazer, sua condição, sua forma? Irão te indicar o destino reservado à tua alma, onde nos colocará a natureza quando formos libertos dos corpos? O que sustenta os corpos mais pesados no meio deste mundo, o que suspende os mais leves, leva o fogo às regiões mais elevadas; indica aos astros a sua rotação e, assim, muitos outros fenômenos ainda mais maravilhosos?

2. Queres, uma vez abandonada a terra, voltar a mente a essas coisas? Agora que o sangue ainda aquece e que está pleno de vigor, devemos atender às coisas melhores. Encontrarás, neste tipo de vida, o entusiamo das ciências úteis, o amor e a prática da virtude, o esquecimento das paixões, a arte de viver e de morrer, uma calma inalterável.

3. Certamente, miserável é a condição de todas as pessoas ocupadas, mais ainda mais miserável a daqueles que sobrecarregam a sua vida de cuidados que não são para si, esperando, para dormir, o sono dos outros, para comer, que outro tenha apetite, que caminham segundo o passo dos outros e que estão sob as ordens deles nas coisas que são as mais espontâneas de todas - amar e odiar. Se desejam saber quão breve é a sua vida, que calculem quão exígua é a parte que lhes toca.

XX

1. Por isso, quando vires, com frequência, uma toga pretexta ou um nome célebre, no foro, não tenhas inveja, já que essas coisas se obtêm a custo da própria vida. A fim de que um único ano lhes seja dado, consumirão todos os seus anos. A vida abandonou a alguns logo na sua primeira fase, antes de conseguirem atingir o máximo de sua ambição; a outros, após terem cometido diversas desonestidades e galgado a mais elevada posição, vem-lhes à mente a amarga convicção de ter trabalhado tanto por uma vã inscrição num túmulo. Por último, os velhos, muito ocupados com as frescas esperanças, que não convêm senão à juventude, sucumbem de fraqueza entre esforços enorme e sôfregos.

2. Vergonha daquele a quem, pela idade avançada, falta fôlego no tribunal, defendendo causas vis e buscando aplauso de um auditório ignorante. Pobre daquele que, cansado mais de viver do que de trabalhar, sucumbe entre suas próprias ocupações. Coitado daquele que, ao morrer, o herdeiro, o qual muito tem feito esperar, escarnece contando o seu dinheiro.

3. Não posso deixar passar um exemplo que me ocorre: Turrânio tornou-se um velho muito ativo, mas, depois dos noventa anos, tendo recebido inesperadamente de Caio César a exoneração de seu cargo, pôs-se à cama e ordenou aos seus, reunidos a sua volta, que o chorassem como morto. A casa toda chorava o ócio do velho patrão, e não findou o luto antes que lhe fosse restituído o seu trabalho.

4. A tal ponto é agradável morrer ocupado? A maior parte dos homens tem o mesmo estado de ânimo: neles, o desejo do trabalho é maior que a capacidade para tal, combatem a decadência do corpo, e a própria velhice lhes parece deplorável, pois os afasta dos negócios. Aos cinquenta anos, a lei dispensa do serviço militar; aos sessenta, não convoca os senadores, mas os homens mais dificilmente concedem a si próprios o repouso do que a lei.

5. Nesse meio tempo, enquanto furtam e são furtados, enquanto um acaba com o descanso do outro, enquanto são reciprocamente infelizes, a vida é sem proveito, sem prazer, sem nenhum progresso do espírito. Ninguém tem a morte diante dos olhos, todos projetam longe as esperanças. Alguns chegam a organizar aquelas coisas que estão além de suas vidas: a construção de grandes mausoléus, a dedicatória de serviços públicos e jogos fúnebres e orgulhosas exéquias. Francamente, os funerais destes, como se tivessem vivido pouquíssimo, deveriam ser conduzidos à luz de tochas e velas.