terça-feira, 31 de outubro de 2017

Patriotismo vs Nacionalismo

O patriotismo é quando o amor à seu próprio povo vem primeiro.
O nacionalismo é quando o ódio às pessoas diferentes, aos que não fazem parte dele, vem primeiro.

Charles de Gaulle

segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Epistulae - Plinio o Jovem

Trechos das duas cartas escritas (Epistulae VI.16, VI.20) por Plinio, o Jovem, enviadas a Tácito, sobre a tragédia ocorrida pela erupção do Vesúvio, que destruiu, não apenas Pompeia, mas Herculano e outras povoações à sua volta em 24 de agosto de 79.

Vós me pedis a descrição do fim de meu tio para transmiti-la com maior veracidade à posteridade: eu agradeço; desse modo, prevejo que sua morte, glorificada através de vossas obras, beneficiar-se-á de uma glória imortal.
Com efeito, se bem que ele tenha perecido simultaneamente com povos e cidades durante um cataclismo que se abateu sobre as mais belas regiões, este notável acontecimento de certa maneira lhe assegura a imortalidade.

E, se bem que ele próprio tenha escrito - numerosas obras destinadas a permanecerem, seu futuro durará tanto mais que a elas se juntará a eternidade reservada a vossos escritos.

Quanto a mim, julgo felizes os homens aos quais os deuses concederam a graça de realizar ações dignas de serem registradas por escrito ou de escreverem livros dignos de serem lidos; mas felizes entre todos aqueles que receberam esta dupla graça. Entre estes incluirei meu tio, graças aos seus livros e aos vossos. Aceito de muito bom grado e até reivindico o que vós me impondes.

Ele se achava em Miseno e comandava pessoalmente a frota. No nono dia antes das calendas de setembro (24 de agosto), por volta da sétima hora (13 horas), minha mãe lhe faz saber que surge uma nuvem de tamanho e de aspecto excepcionais; meu tio havia tomado banho de sol, depois banho frio e, tendo feito uma refeição ligeira, trabalhava descontraído; pediu os calçados e subiu a um local de onde se podia melhor observar esse prodígio.

Levantava-se uma nuvem (de longe era impossível saber-se de que montanha; depois se soube que se tratava do Vesúvio). Parecia exatamente um pinheiro. De fato, estirada numa espécie de tronco muito comprido, espalhava-se no ar em ramificações; creio que havia sido levada por uma corrente de ar recente e depois, ao cessar esta última, a nuvem, abandonada, ou vencida pelo próprio peso, dissolveu-se se espalhando, ora branca, ora cinzenta e malhada, conforme estivesse carregada de terra ou de cinzas.

A meu tio o fenômeno pareceu importante e digno de ser estudado mais de perto: era a atitude natural de um sábio.

Fez armar uma galera Iiburniana (cruzador leve com duas fileiras de remos) e deu-me liberdade de acompanhá-lo se eu o quisesse; respondi que preferia estudar e ele mesmo indicou-me o assunto de que eu deveria tratar.

Ele saía de casa quando recebeu um recado de Rectina, mulher de Cascus, assustada com o perigo que a ameaçava: de fato, sua vivenda estava localizada em nível inferior ao vulcão e ela não tinha outra fuga senão pelo mar, suplicando a meu tio que a salvasse de destino tão funesto. Meu tio mudou de ideia e o que havia começado pelo amor da ciência ele terminou com o sentimento mui elevado do dever.

Fez sair os quadrirremes, ele próprio embarcou decidido não somente a socorrer Rectina, mas também outras pessoas (na realidade, os encantos do litoral atraíam muita gente).

Apressou-se rumo ao local de onde outros fugiam e manteve o remo de sua embarcação alinhado na direção do perigo, tão isento do medo que todas as fases desta catástrofe, todos os seus aspectos, contanto que os tivesse visto, meu tio os ditava ou os escrevia ele mesmo.

As cinzas já começavam a cair sobre o navio; à medida que seus ocupantes se aproximavam, as cinzas tornavam-se mais quentes e densas; viam-se já as pedras-pomes e seixos pretos queimados, expelidos pelo fogo; um baixio acabara de surgir e as rochas desabadas interditavam as margens.

Ele hesitou por um momento: recuaria ele?
A seu piloto, que a isto lhe aconselhava, disse ele: "A fortuna favorece a coragem; tome o rumo da habitação de Pomponianus".

Este último estava em Stabia, separada de sua moradia pela metade do golfo (naquele local, o litoral tem forma redonda, em suave curva, que o mar penetra). Naquele lugar, embora o perigo ainda não se tivesse dele aproximado, apesar de ser visível e de que, aumentando de intensidade, chegava cada vez mais perto, Pomponianus havia ordenado carregar os navios com sua bagagem, decidido a fugir assim que o vento virasse; este vento muito favorável empurrava meu tio, que beijou o amigo trêmulo, consolou-o, encorajou-o.

E, para que sua firmeza lhe atenuasse os temores, desceu para banhar-se; uma vez limpo, pôs-se à mesa, comeu com prazer ou, o que era igualmente magnânimo, afetou prazer.

Durante esse tempo, o Vesúvio brilhava em vários lugares com chamas imensas e altas colunas de fogo de cores vivas. A claridade era acentuada pelas trevas da noite. Meu tio, entretanto, para acalmar o temor, repetia que eram fogueiras deixadas acesas por camponeses apressados ou vilas abandonadas que se incendiavam. Nesse momento, ele se entregou ao repouso e dormiu um sono autêntico. Sua respiração, profunda e sonora devido à sua corpulência, era ouvida pelos que passavam pela porta do quarto.

Mas o pátio por onde se tinha acesso aos seus aposentos já estava cheio de cinzas e de pedras-pomes, elevando o nível do chão a tal ponto que, se meu tio tivesse ficado mais tempo no quarto, não teria podido sair. Acordado, levantou-se e foi ao encontro de Pomponianus e dos outros, que haviam ficado acordados a noite toda. Todos deliberaram de comum acordo: ficar dentro da casa ou sair?

As casas vacilavam depois de frequentes e graves tremores de terra; abaladas em seus alicerces, pareciam balançar de um lado para outro. Ao ar livre, por outro lado, temia-se a queda de pedras-pomes, embora fossem leves e porosas. Foi a isto que todos preferiram depois de compararem os perigos. Quanto a meu tio, a proposta mais razoável venceu; quanto aos outros, venceu o medo maior. Colocando travesseiros sobre a cabeça, amarraram-nos com fronhas e lençóis; isto servia de proteção contra tudo que caía do alto.

O dia já estava claro em todas as partes, mas aqui era a noite mais tenebrosa, mais negra que todas as outras noites. No entanto, numerosas vermelhidões e luzes variadas suavizavam-na.

Foi decidido ir-se até à praia e ver de perto se era possível sair navegando. O mar continuava agitado e adverso. Repousando sobre um lençol, várias vezes meu tio pediu água e bebeu.

Depois as labaredas e o odor do enxofre que as anunciava afugentaram seus companheiros e o acordaram. Apoiando-se em seus dois jovens escravos, levantou-se e logo caiu. Suponho que a fumaça muito grossa obstruiu lhe a respiração e fecho-lhe a laringe que, por natureza, ele tinha estreita e frequentemente oprimida.

Quando nasceu o dia (era o terceiro e o último que ele vira), seu corpo foi encontrado, em perfeito estado e coberto com as vestimentas que havia posto ao partir. Sua atitude assemelhava-se à de um homem que repousa do que à de um morto.

Durante esse tempo, em Miseno, minha mãe e eu.. Mas isto nada tem a ver com o caso e vós não quisestes saber outra coisa que não a morte de meu tio. Portanto, vou terminar.

Acrescentarei apenas que vos contei tudo a que assisti e que me foi relatado imediatamente, quando os relatos são mais exatos. Vós fareis a seleção que vos aprouver. Escrever uma carta é uma coisa, outra coisa é escrever uma página de história; escrever a um amigo é diferente de escrever para o público. Adeus.

Trecho da segunda carta, escrita depois de novo pedido do historiador Tácito. Onde Plínio, o Jovem, faz o relato perigos aos quais ele próprio e sua mãe esteve a escapar.

Vós me dizeis que a carta em que, a vossas instâncias, eu vos contei a morte de meu tio levou-vos a desejar saber que temores e mesmo que perigos eu enfrentei, eu que ele deixou em Miseno (de fato, eu havia chegado lá quando interrompi a missiva).

Se bem que meu coração treme com tais lembranças, recomeçarei.

Após a partida de meu tio, passei todo o resto do tempo estudando (aliás, eu havia permanecido com este objetivo); logo depois tomei banho, jantei e deitei-me para um sono curto e agitado. Durante muitos dias, como sinais de advertência, registraram-se abalos telúricos menos assustadores porque já estávamos habituados a isto na Campânia.

Mas naquela noite estes abalos assumiram tamanha intensidade que tudo parecia não tremer, mas girar. Minha mãe precipitou-se dentro do meu quarto onde, de minha parte, eu já estava de pé e decidido a ir acordá-la. Sentamo-nos no pátio da casa, exíguo espaço que separava a casa do mar. Hesito em falar de minha autoconfiança ou de minha imprudência (afinal, eu tinha meus 18 anos); eu implorei um livro de Tito Lívio e, como se estivesse em período de lazer, li e fiz até resumos, conforme havia começado. Chegou um amigo de meu tio, que acabava de regressar da Espanha para vê-lo. Quando me viu sentado em companhia de minha mãe, e me viu lendo, censurou minha passividade e minha indiferença com tanta veemência que eu permaneci atento à leitura.

Já era a primeira hora do dia e a claridade ainda era incerta e quase doentia; o casario já se espreguiçava e, apesar de estarmos ao ar livre, a estreiteza do lugar nos fazia temer grandes e inevitáveis perigos em caso de desabamento. Foi somente então que decidimos abandonar a cidade; uma multidão seguia consternada e, em meio ao pavor, identificava-se uma espécie de sabedoria - todos preferiam a decisão alheia à sua própria; uma imensa coluna empurrava e apressava os que partiam. Uma vez ultrapassada a zona construída, detemo-nos e aí experimentamos muitos sobressaltos.

Na verdade, as viaturas que havíamos levado conosco, apesar de o terreno ser perfeitamente plano, eram puxadas para o sentido oposto e, mesmo escoradas por pedras, não ficavam no lugar.

Além do mais, víamos o mar se afastar como se fosse repelido pelos abalos. Em todo caso, a praia havia aumentado de tamanho e, sobre a areia ressequida, viam-se muitos animais marinhos.

Do outro lado, uma nuvem vermelha e assustadora, rasgada por rápidos e cintilantes ziguezagues de uma língua de fogo, entreabriu-se formando longas chamas, semelhantes a relâmpagos, porém maiores.

Foi então que o mesmo amigo de Espanha fez-se mais enérgico e mais insistente. "Se vosso tio está vivo - disse ele - ele quer que sejais salvos; se ele pereceu, ele quis que vós lhe sobrevivêsseis. Por que então tardam a agir?"

Respondemos-lhe que não podíamos nos preocupar com nossa salvação quando nada sabíamos sobre a dele.  

Sem mais tardar, deixou-nos e, correndo desenfreadamente, escapou ao perigo.

Pouco depois, uma nuvem desceu sobre a terra e cobriu o mar, envolveu Capri e tirou-a da visão, ocultando agora o promontório de Miseno.

Foi então a vez de minha mãe rogar-me, exortar-me, ordenar-me a fugir por todos os meios; isto era-me possível, a mim que era jovem. Quanto a ela, alquebrada pela idade, morreria contente, se não fosse a causa de minha morte.

Eu então lhe respondi que só me salvaria junto com ela. Peguei-lhe então a mão e obriguei-a a apertar os passos. Ela obedeceu a contragosto e acusou-se de me retardar.

Viro-me: uma névoa negra e grossa ameaçava-nos por trás e seguia-nos, como uma torrente que se espalha sobre o solo. "Tomemos um atalho, enquanto podemos enxergar" - disse eu, com receio de sermos jogados ao chão na estrada e de sermos esmagados nas trevas pela multidão dos que fugiam conosco.

Mal nos sentamos, eis que cai a noite, não uma noite nublada e sem lua, mas uma noite que se passa num lugar fechado, com todas as luzes apagadas. Ouviam-se os gemidos das mulheres, o choro dos bebês, os gritos dos homens; alguns chamavam o pai ou a mãe pelos nomes, tentando localizá-los, outras chamavam pelos esposos, outros pelos filhos. Alguns lamentavam a própria adversidade, outros lamentavam a desgraça dos que lhes eram próximos; havia gente que, temendo a morte, invocava a morte, muitos estendiam os braços para os deuses, mas mais de uma pessoa explicou que em nenhuma parte havia mais deuses, que aquela noite eterna era a última do mundo.

Não faltava quem aumentasse os perigos reais mediante terrores fingidos e mentirosos. Chegavam pessoas anunciando que em Miseno tal edifício desabara, que aquele outro se incendiara: era falso, mas havia quem acreditasse.

Uma fraca claridade reapareceu. Uma claridade que nos parecia não a luz do dia, mas indício da aproximação do fogo. Pelo menos o fogo não avançava muito; novamente as trevas, novamente as cinzas abundantes e pesadas. De vez em quando levantávamo-nos para sacudí-Ias, senão elas nos cobririam ou mesmo nos esmagariam com seu peso.

Eu poderia me vangloriar de não ter deixado escapar um gemido, uma palavra pouco corajosa em meio a tão grandes perigos, se o pensamento de que eu perecia com tudo e de que tudo perecia comigo não me tivesse trazido um consolo amargo, certamente, mas apreciável.

Por fim o nevoeiro negro atenuou-se e desfez-se à maneira de uma fumaça ou de uma nuvem; logo depois brilhou a verdadeira luz do dia, o sol; no entanto, estava lívido como por ocasião de um eclipse.

Aos olhos ainda indecisos, tudo se oferecia sob um novo aspecto, tudo coberto por uma espessa camada de cinzas, como acontece com a neve. Regressando a Miseno, restauramos nossas forças como foi possível e passamos uma noite inquieta, divididos entre a esperança e o medo.

O medo era mais forte: a terra continuava a tremer e a maioria das pessoas, com o espírito transtornado por terríveis pressões, fazia mofa de suas desgraças e das dos demais.

Mas, nem mesmo naquele momento, embora conhecêssemos o perigo por experiência e esperássemos sua reincidência, não tivemos intenção de partir sem ter notícias de meu tio.

São estes os acontecimentos, indignos da história, e vós lereis, sem ter a intenção de escrevê-los em vossas obras; e culpareis a vós mesmos, que me pedistes, se eles não forem dignos sequer de uma carta. Adeus.

domingo, 15 de outubro de 2017

Imperium - Ryszard Kapuscinski

Depois de setenta e três anos de socialismo, as pessoas não sabem o que é a liberdade de pensamento e, assim, em seu lugar, praticam a liberdade de ação. E aqui a liberdade de ação significa liberdade para matar. E há perestroika para você, o novo pensamento.

Ryszard Kapuscinski
Imperium - 1993


Todos os ditadores, independentemente da época ou do país, têm uma característica comum: sabem de tudo, são especialistas em tudo. Os pensamentos de Kadafi e Ceauşescu, Idi Amin e Alfredo Stroessner - não há fim para as profundezas e a sabedoria.
Stalin foi especialista em história, economia, poesia e linguística. Como se viu, ele também era especialista em arquitetura..

Ryszard Kapuscinski
Imperium - 1993


Stalin ordenou a construção de uma estrada entre Yakutsk e Magadan.
Dois mil quilômetros pela taiga e permafrost.
Eles começaram a construí-la simultaneamente de ambos os lados.
O verão veio, o degelo e o permafrost derretendo, a água inundando o solo, transformou a estrada em um pântano.
Afogou-a e aos prisioneiros que trabalhavam nela.
Stalin ordenou que o trabalho continuasse.
Mas acabou da mesma maneira.
Mais uma vez, ele ordenou.
Os dois extremos da estrada nunca se encontraram, mas seus construtores talvez se encontraram no céu.

Ryszard Kapuscinski
Imperium - 1993